
Com a emergente popularidade de várias técnicas que visam o aumento ou melhoria da mobilidade, a prevenção de lesões e potenciação do desempenho motor, sou tentado a acompanhar cada tema com concomitante pesquisa e raciocínio. É importante que acompanhemos a ciência, que estudemos, e que isso traga lógica às intervenções a que sujeitamos as pessoas que colocam a sua saúde em nossas mãos.
Uma das mais populares técnicas é a libertação miofascial (LMF). Esta técnica visa a libertação de supostas tensões ou restrições no tecido fascial. Há empresas a formar profissionais nesta técnica e os ginásios foram invadidos por foam rollers, que são usados para “massajar” o tecido – apesar de se tratar literalmente de um esmagamento. A técnica surge na sequência da importância que a fáscia adquiriu no âmbito científico: “está em todo o lado”, “é extremamente enervada” e “possui propriedades contrácteis”, são as principais premissas justificativas para a invenção de uma técnica que tenta libertar este tecido Humano – curioso não existir um método não invasivo (sem ser percutâneo) que diagnostique tal “restrição” ou “tensão” fascial. Ou seja, a LMF poderá estar a ser aplicada sem que seja necessário.
Começarei explicando que estas premissas não são exclusivas da fáscia, logo não lhe conferem, só por si, a importância reclamada. Vejamos: Está em todo o lado? Também o epitélio (aliás a pele é mesmo o maior órgão do corpo Humano). É extremamente enervada? Sim, mas também o músculo o é (talvez até muito mais). Possui propriedades contrácteis? Sim, contém tecido muscular do tipo liso, mas não são músculos! São simplesmente miofibroblastos.
É deveras importante contextualizar os Treinadores e Terapeutas que usem a LMF. Apesar de se acreditar que friccionar ou alongar este tecido traz as melhorias que vêm nos seus clientes/pacientes, não existem provas concretas disso, nem tão pouco instrumentos que testem esta hipótese. Mas não sou apologista da dependência total da ciência, terá contudo de haver lógica. Será que há lógica que suporte o uso da LMF?
Quando falamos de fáscia, hoje em dia no mundo do Fitness, falamos de algo quase “mágico”. Falamos de um tecido, cuja descoberta de suas funções foi tão importante como a “pólvora”. O problema é que a fáscia é um tecido do tipo conjuntivo e enquanto não se abordar e analisar este tecido á luz da sua estrutura e função, dificilmente perceberemos sequer se está “tenso” ou “restrito”, quanto mais se o devemos libertar, ou melhor, se é sequer libertável. Falar da fáscia é, pelo menos em grande parte, falar de tecido conjuntivo. Assim, irei dedicar o resto deste artigo ao tecido em si, de forma compreensiva o suficiente para o retirar do simplismo a que foi remetido pelo nosso sector.
Na sua organização anatómica, a maior parte da fáscia liga o tecido muscular ao ósseo. Portanto, ainda que morfologicamente distinto de um tendão, desempenha funções tendinosas – transmissão da força muscular ao sistema articular.
Na sua maioria é tecido conjuntivo do tipo denso irregular. Denso por ser abundante em colagénio e irregular por suas fibras não se disporem numa orientação paralela – nem perto sequer – mas sim semelhante a uma teia. Característica esta que nos faz concluir que a eficácia da LMF dependerá da multiplicidade de direções de deformação e não de uma só direção, ao contrário do que se faz na fáscia lata, por exemplo, onde o rolo é usado para massajar a face lateral da coxa somente no sentido superior-inferior. Continuando, é um tecido com um sistema de vascularização muito pobre, o que lhe confere uma taxa de adaptação muito lenta – a taxa de adaptação dos componentes celulares da fáscia pode ir de 2 dias aos 500 dias, já que o metabolismo é muito baixo (Robert Schleip, Journal of Bodywork and Movement Therapies, January 2003). Ora, seja qual for o efeito que se julgue que a LMF desencadeie, se for um efeito verificável de imediato, é pouco provável que tenha sido uma adaptação fascial.
O colagénio do tipo I é o mais abundante tipo de fibra contida neste tecido. Robert Schleip, um dos cientistas mais proeminentes no estudo da fáscia e das técnicas de LMF, afirma que “A ciência diz que terias de aplicar uma tonelada de pressão para provocar estas alterações.” (Science, vol. 318, No. 23 Nov 2007). O que quer dizer que “...a fáscia plantar e a fáscia lata requerem grande força – muito além do fisiologicamente possível – para sequer sofrerem uma deformação de 1%...” (Chaudhry, e col., 2008. Journal of the American Ostheopathic Association. vol. 108 No. 8). Estas afirmações têm como base a força tensil do colagénio, que se aproxima à do aço (Lavangie e Norkin, Joint Structure & Function, 2012). Fazendo já um parêntesis breve, a LMF é uma técnica que visa a melhoria da função motora, através da libertação do “aço”? não me parece que seja plausível, sequer imaginável.
É verdade que é muito enervada, mas este argumento, desprovido de mais conteúdo, não nos diz nada. A fáscia não possui o único mecanoreceptor capaz de modular a tensão tecidular, o fuso neuromuscular, sendo pouco provável que a sua tensão se autorregule. Mais importante ainda, só possui sistema neural aferente (do tecido para o sistema nervoso central), sendo desprovida de eferência (do sistema nervoso central para o tecido) o que a impossibilita de receber quaisquer ordens contracteis. Portanto é mais provável que quaisquer “tensão” ou “restrição” fascial – se realmente acontecer – tenha origem nos músculos que a conectam. Por exemplo, a fáscia lata não é mais que um tendão membranoso, comum ao grande glúteo e ao, logicamente nomeado, tensor da fáscia lata.
Todos os tecidos Humanos são um contínuo biológico e, por isto mesmo, será de esperar que os tecidos possuam uma certa percentagem de células dos tecidos adjacentes. Uma vez que a fáscia cumpre funções também tendinosas, será de esperar que possua miofibroblastos, até porque a sua concentração é mais elevada na fáscias lata e toracolombar (Schleip, Fascia Research, 2007), os “tendões” do tensor e do grande dorsal, respectivamente.
Os miofibroblastos são células musculares do tipo liso e são migratórias. Por não estarem determinantemente fixas podem mudar de localização. O curioso é que, uma vez que não existe eferência neural na fáscia, estas células contrácteis não são excitáveis – não respondem ao estímulo eléctrico. Os miofibroblastos são reativos à secreção inflamatória localizada, podendo regular ou mesmo produzir secreção inflamatória, pelo que a sua contração continuada sinaliza o depósito de colagénio – ou seja, mais aço! Nesta lógica, é mais provável que a sua função NÃO seja motora mas sim de recuperação do próprio tecido. Saliente-se que a ciência desconhece o que a LMF faz aos miofibroblastos, ao serem esborrachados por baixo de um rolo com nome pomposo. Será importante que tenhamos a certeza que a função destas células não seja diminuída, o que pode comprometer recuperação do próprio tecido.
Finalizando, lembremo-nos que a LMF atinge todos os tecidos, desde a pele ao osso, e que muitos deles não estão preparados para sofrer deformações transversais. Com os dados que apresentei aqui neste breve artigo, poderemos afirmar que, seja qual for o benefício ou malefício decorrente da LMF, estará provavelmente a surgir noutros tecidos com taxas adaptativas mais rápidas, tais como o músculo ou mesmo a pele. Mesmo assim, é urgente que o Fitness assuma uma postura mais humilde perante o corpo Humano e que não tente correr mais rápido que a ciência ou, se o fizer, que ao menos seja com lógica. Por enquanto não há lógica, nem ciência, que suporte o uso da LMF.
João Moscão
• Formador em Biomecânica, Anatomia e Fisiologia Articular e Muscular desde 2008.
• Criador e Formador dos cursos Engage, Performance e Pro da EXS – Exercise School.
CV:
• Representante exclusivo do RTS em Portugal.
• Treinador Particular no Virgin Active Lisboa.
• Certified Muscle Activation Specialist (MAT) – Denver.
• Mastery Level Resistance Training Specialist (RTSM) – Oklahoma.
• Certificado Entrenamiento Resistencias Avanzado (ERA) – Barcelona.
• Resistance Training Specialist (RTS) – Oklahoma.